Viagem pelo litoral cearense - Diário do Nordeste
17/10/2010
Camocim. Se a história do Ceará fosse contada a partir da ocupação do homem "civilizado", o litoral deste Estado seria a primeira "terra à vista" no contexto histórico de "descobrimento do Brasil". Antes mesmo de Cabral, os navegantes espanhóis Vicente Pinzón e Diogo Lepe teriam pisado em solo cearense. Mas, muito antes de Cabral e Pinzón, milhares de pessoas já ocupavam essa área de litoral. Até hoje as famílias indígenas resistem à ocupação, reunidas com famílias de não-índios e negros que também se mantêm há séculos, constituindo todos os "Povos do Mar do Ceará". Em mais de 570km de costa, compreendendo 21 municípios, o litoral é fonte de cultura e de sobrevivência de centenas de comunidades. Mar é mais do que água. É areia, dunas, falésias, pássaros, mangues, povos e suas culturas. "Mas é aquilo que a gente tem desde que nasce, até morrer", comenta a marisqueira Tereza Nunes.
Enquanto o leitor confere esta e as próximas páginas, dona Tereza Nunes cata búzios na Praia de Arpueiras, em Acaraú, para completar o almoço de domingo, mesmo que nos outros dias também tenha comido marisco; também, neste dia, os amigos Ermeson da Silva, Carlos Mateus, Carlos Eduardo e Ícalo Bastião estarão brincando na Praia da Redonda, em Icapuí, procurando peixe nas poças de água e usando lama como protetor solar para a pele. O bugueiro José Alves Paulino sobe o morro para os turistas se deslumbrarem com a Praia de Águas Belas, em Cascavel. E seu José Ivan Rodrigues de Oliveira estará no "15° sol" de uma viagem de 20 dias de pesca, a partir de Camocim. Vivendo mais dias em mar aberto do que em terra, não sabe mais dizer o que é mais importante.
Em séculos de ocupação e história, o litoral é talvez a única região que não descansa. Enquanto houver onda, tem gente indo e vindo, de longe ou de perto. Na madrugada escura, em que o pescador se despede da terra, tem jovens dançando reggae numa barraca de Canoa Quebrada, com testemunho da lua e iluminação de uma fogueira. O dia amanhece e tem mais gente. Pode ser turista, nativo, empreendedor ou a equipe de reportagem, seguindo um roteiro de visitas a comunidades litorâneas ou sendo impedida de passar, porque uma empresa se apropriou de parte da praia com a única estrada de acesso à comunidade Xavier, em Camocim. São pelo menos 93 grupos de povoados numa extensão que percorre desde a comunidade de Bitupitá, em Barroquinha, já na divisa com o Piauí, até Arrombado, em Icapuí, na divisa com o Rio Grande do Norte. Muitos quilômetros de vidas, alegrias, guerras e resistências.
A maioria das famílias vive, basicamente, da pesca e complementa a renda com artesanato e turismo. Peixes, crustáceos e mariscos caem na rede ou nas mãos de milhares de pessoas. Elas alimentam seus filhos, eles estudam nas escolas da comunidade, alguns querendo ser "doutores", outros pescadores mesmo. "Os dois filhos-macho estão comigo, e as três fêmeas ajudam a mãe em casa, sendo que uma ´tá´ seguindo nos estudos e vai se formar", contou José Ivan, de mochila na mão, minutos antes de embarcar para a viagem de 20 dias pelo mar. Na ida, água, bolacha, farinha, feijão e rapadura; para a volta, certamente na próxima quinta-feira, espera trazer até 700kg de peixe, que pode ser sardinha, sirigado, mas "se Deus quiser", guaiúba, o favorito para venda.
"Faz é tempo que a pescaria ´tá´ ruim", diz Ivan. Enquanto é fotografado, os amigos brincam que "vai passar no Rota 22", programa policial da TV Diário. Mas "aqui só vai assim, na molecagem", explica. A última fotografia é das mãos. Quando os calos estão muito grossos, passa a faca, como quem descama um peixe.
Pelo trabalho, mar aberto é um campo de prisão de muitos homens pescadores, que alguns já chamam de bóias-frias do mar. O barco nem os equipamentos são de Zé Ivan. E para cada quilo de guaiúba que os pescadores trazem, os atravessadores lhes pagam R$ 1,50, revendem a comerciantes maiores por R$ 9,00, e o quilo do peixe pode chegar a R$ 12,00 na prateleira do supermercado na mesma cidade do pescador.
Depois de Vicente Pinzón, Pero Coelho e Martins Soares Moreno, o litoral foi ponto de chegada de muitos sertanejos fugidos da seca. Na praia, o índio e o não-índio têm morada. O único lugar que não para de ter vento e o grande mugido das águas.
A zona da costeira do Ceará é celeiro econômico, turístico, de belezas e riquezas naturais. O lugar é o terreno de quem fez o caminho inverso, veio do sertão em busca de dias melhores, ergueu a cabeça e concordou com o que havia no horizonte: "mar à vista
Enquanto o leitor confere esta e as próximas páginas, dona Tereza Nunes cata búzios na Praia de Arpueiras, em Acaraú, para completar o almoço de domingo, mesmo que nos outros dias também tenha comido marisco; também, neste dia, os amigos Ermeson da Silva, Carlos Mateus, Carlos Eduardo e Ícalo Bastião estarão brincando na Praia da Redonda, em Icapuí, procurando peixe nas poças de água e usando lama como protetor solar para a pele. O bugueiro José Alves Paulino sobe o morro para os turistas se deslumbrarem com a Praia de Águas Belas, em Cascavel. E seu José Ivan Rodrigues de Oliveira estará no "15° sol" de uma viagem de 20 dias de pesca, a partir de Camocim. Vivendo mais dias em mar aberto do que em terra, não sabe mais dizer o que é mais importante.
Em séculos de ocupação e história, o litoral é talvez a única região que não descansa. Enquanto houver onda, tem gente indo e vindo, de longe ou de perto. Na madrugada escura, em que o pescador se despede da terra, tem jovens dançando reggae numa barraca de Canoa Quebrada, com testemunho da lua e iluminação de uma fogueira. O dia amanhece e tem mais gente. Pode ser turista, nativo, empreendedor ou a equipe de reportagem, seguindo um roteiro de visitas a comunidades litorâneas ou sendo impedida de passar, porque uma empresa se apropriou de parte da praia com a única estrada de acesso à comunidade Xavier, em Camocim. São pelo menos 93 grupos de povoados numa extensão que percorre desde a comunidade de Bitupitá, em Barroquinha, já na divisa com o Piauí, até Arrombado, em Icapuí, na divisa com o Rio Grande do Norte. Muitos quilômetros de vidas, alegrias, guerras e resistências.
A maioria das famílias vive, basicamente, da pesca e complementa a renda com artesanato e turismo. Peixes, crustáceos e mariscos caem na rede ou nas mãos de milhares de pessoas. Elas alimentam seus filhos, eles estudam nas escolas da comunidade, alguns querendo ser "doutores", outros pescadores mesmo. "Os dois filhos-macho estão comigo, e as três fêmeas ajudam a mãe em casa, sendo que uma ´tá´ seguindo nos estudos e vai se formar", contou José Ivan, de mochila na mão, minutos antes de embarcar para a viagem de 20 dias pelo mar. Na ida, água, bolacha, farinha, feijão e rapadura; para a volta, certamente na próxima quinta-feira, espera trazer até 700kg de peixe, que pode ser sardinha, sirigado, mas "se Deus quiser", guaiúba, o favorito para venda.
"Faz é tempo que a pescaria ´tá´ ruim", diz Ivan. Enquanto é fotografado, os amigos brincam que "vai passar no Rota 22", programa policial da TV Diário. Mas "aqui só vai assim, na molecagem", explica. A última fotografia é das mãos. Quando os calos estão muito grossos, passa a faca, como quem descama um peixe.
Pelo trabalho, mar aberto é um campo de prisão de muitos homens pescadores, que alguns já chamam de bóias-frias do mar. O barco nem os equipamentos são de Zé Ivan. E para cada quilo de guaiúba que os pescadores trazem, os atravessadores lhes pagam R$ 1,50, revendem a comerciantes maiores por R$ 9,00, e o quilo do peixe pode chegar a R$ 12,00 na prateleira do supermercado na mesma cidade do pescador.
Depois de Vicente Pinzón, Pero Coelho e Martins Soares Moreno, o litoral foi ponto de chegada de muitos sertanejos fugidos da seca. Na praia, o índio e o não-índio têm morada. O único lugar que não para de ter vento e o grande mugido das águas.
A zona da costeira do Ceará é celeiro econômico, turístico, de belezas e riquezas naturais. O lugar é o terreno de quem fez o caminho inverso, veio do sertão em busca de dias melhores, ergueu a cabeça e concordou com o que havia no horizonte: "mar à vista
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