A carranca (adorno localizado na proa da embarcação) do navio negreiro Laura II naufragado na Praia do Iguape em 1839. |
Eram quatro horas da tarde do dia 11 de junho de 1839, quando uma escuna se aproxima da praia de Arapaçu (atual Iguape), vinda do norte. Não conseguindo alcançá-la faz-se ao mar novamente e numa segunda tentativa consegue aportar, ficando com as velas arriadas. Ninguém foi visto a bordo.
No dia seguinte, pessoas que foram colher mariscos viram muitas pegadas sobre a areia dos morros e concluíram que as pegadas eram de pessoas que desembarcaram daquele barco misterioso. À tarde um morador comunicou ao inspetor de Arapaçu, que tinham ido à sua casa 17 homens, sendo 15 pardos, um europeu e um preto que trazia com um ferimento de faca. Todos estavam armados e fugiam, e o morador acreditava que fossem embarcadiços. Em consequência, Antônio José de Souza, o inspetor de Arapaçu resolveu ir a bordo, e com oito homens do quarteirão, em duas jangadas, transportou-se para lá. Descobriu que a escuna estava despovoada, havia, porém vestígios de sangue. Foi objeto de muitos comentários no pequeno arraial o caso da escuna que não tinha gente, mas trazia manchas de sangue.
Praia do Iguape |
No dia 13, uma quinta-feira, também o inspetor do Cajueiro do Ministro reuniu os seus homens em número de 9 e se dispôs a sair no encalço dos embarcadiços. Foi informado por um passante que vira os fugitivos escondidos no mato alto. Estavam todos armados.
O europeu soube-se depois, era o português de Almada Bernardo José da Silva, andava à frente daquela turma de homens com o título de Senhor e os pretos lhe chamavam de “manjor”. O navio encalhado era o Laura II proveniente do Maranhão, o qual tinha partido dali no dia 10 de maio com carregamento de arroz, milho, farinha de trigo, manteiga, barricas vazias e dinheiro de cobre, que se avaliava em quatro ou cinco contos de réis. Era comandado pelo português Francisco Ferreira que se fazia acompanhar de seu escravo preto Antônio, incumbido da cozinha do navio, além do prático Felipe e de um contramestre. Havia ainda três marinheiros, e seis ajudantes com funções diversas; treze tripulantes ao todo. Vinham também como passageiros dois homens forros, 6 escravos e dois moleques, total de 23 pessoas. Lutando contra os ventos e as correntes, a Laura II tinha conseguido amarrar no porto de Fortaleza após 49 dias de viagem. Reabastecido de provisões, tomou o rumo de Pernambuco no dia 9 de maio e na noite seguinte achava-se apenas na altura de Arapaçu, cerca de oito léguas ao sul.
Em Fortaleza, Constantino, preto, baiano, escravo do armador, acompanhado de outros, foi à presença do capitão queixar-se do mal que passavam e da pouca comida que lhes distribuíam. A resposta do comandante foi dura: que eles mereciam era muito açoite. Humilhados, e sem esperança no seu direito, os negros começaram a se rebelar contra as condições em que viajavam. Aos poucos, a conspiração foi tomando corpo. A vingança foi acertada ao deixarem as águas de Fortaleza. Mal se aperceberam os oficiais e passageiros do navio.
O capitão foi atacado no seu camarote a golpes de faca; fugiu e se refugiou no lugar do leme, sendo lançado ao mar. O contramestre e o prático Felipe foram igualmente esfaqueados e jogados no mar. Os demais tripulantes e alguns passageiros foram assassinados a pauladas. O único que restava dos brancos foi posto a serviço dos revoltosos. Salvaram-se os que foram considerados inofensivos, como o cozinheiro do capitão, os negros passageiros, e os dois moleques. Na manhã seguinte tratou-se de repartir os despojos e fugir. Todo dinheiro de papel existente a bordo foi repartido, cabendo aos mais fortes o maior quinhão, e dando-se uma parcela menor aos passageiros.
Só pelas duas da tarde, a escuna Laura II pode avizinhar-se da terra. Previamente lhe tinha sido feito um buraco com um pé-de-cabra para que fosse a pique. No dia 11 de maio o grupo dos revoltosos fez o seu desembarque. Ganhando os tabuleiros, à mercê dos acontecimentos e sem nenhuma ideia da região em que se encontravam.
Ao acaso tomaram a estrada do Cajueiro do Ministro, enquanto a embarcação Laura II encharcava-se e acabou imergindo na noite do dia 12 deixando apenas as pontas dos mastros. As autoridades locais, justamente indignados daquele atentado contra a vida e a propriedade, passaram a investigar, e a indagar minuciosamente pelo dinheiro e pelas mortes. Presos, os negros desmentiram todo medo com que fugiam e confessaram, com assombrosa lealdade, o que havia feito cada um, dando seu testemunho na inocência dos demais.
O que havia na consciência deles era a melhor noção do direito; entendiam que podiam partir ao meio todo senhor que os tolhesse e matar os que lhe submetiam a um tratamento injusto e desumano. De Cascavel, os presos foram transferidos para a cadeia de Fortaleza, vindo acompanhados do processo que foi iniciado naquela localidade. Grande foi a expectativa quando esta gente chegou à casa do juiz de paz Vicente Mendes Pereira, um sobrado na Rua Major Facundo. Todos queriam ver os criminosos, não pela estranheza do crime, da culpa assumida, mas pela sorte que os aguardava.
Submetidos ao júri, seis foram condenados a morte por enforcamento: João Mina, Hilário, Benedito, Antônio, Constantino e Bento. No dia 22 de outubro de 1839, no Passeio Público, Constantino - tido como chefe e mentor do ataque aos tripulantes da escuna Laura II - comandou a derradeira batalha da vida: mandou adiante cada um dos seus companheiros, e depois impávido, subindo no cadafalso como pelas vergas do Laura II, sacudiu, olhando ao redor para que vissem bem aquilo... pôs o laço e atirou-se no espaço.
Extraído do livro de João Brígido
Ceará (homens e fatos)
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